Sentado numa pequena mesa de café em Bruxelas, Shadi Torbey (um dos mais talentosos designers de jogos da actualidade), leva-nos a explorar as suas criações. Acompanhado por uma boa cerveja Belga, lá fui tentando desvendar os segredos do Oniverse.
(A entrevista original em Inglês encontra-se no fundo da página)
(For english, please scroll down)
Shadi, antes de mais, muito obrigado por me deixares interromper a tua agitada vida profissional com este conjunto de perguntas aborrecidas. Espero que no final desta entrevista não estejas arrependido por teres aberto aquele email e teres dito que sim á entrevista!
Shadi: Pelo Contrário, obrigado – e espero que tu não te aborreças com as respostas!
Para aqueles que não te conhecem, tu és o designer de uma série de jogos que partilham a mesma atmosfera e ilustrações maravilhosas: o Oniverse. Estou a falar de Onirim, Urbion, Sylvion, Castellion e Nautilion. Tu és também um artista, um cantor lírico profissional, participaste em várias Óperas, ganhaste diversos prémios e ficaste em terceiro no “The Queen Elisabeth Competition” – um dos mais prestigiados prémios do mundo. Por isso a minha primeira questão é a seguinte: Como é que o fazes? Como é que arranjas tempo para criar jogos?
Shadi: Ser um cantor de Ópera exige muito de ti, mas também tens muito tempo livre. E ora estou numa produção no estrangeiro longe da minha família e amigos, e tenho muito tempo para jogar e testar os meus protótipos, ou estou em casa a preparar-me para a minha próxima produção – o que significa que posso organizar o meu tempo de trabalho e guardar algum espaço para os jogos.
A tua carreira profissional é uma das fontes de inspiração dos teus jogos? Ou a tua carreira de designer de jogos e a tua carreira profissional são duas coisas distintas?
Shadi: As duas estão separadas, mas têm algo muito importante em comum: em ambos os casos eu comecei como “espectador/jogador”, e depois decidi que eu também o queria fazer – e tornei-me “cantor/designer”.
Entre ensaios, pensas em jogos de tabuleiro, nos teus protótipos, ou estabeleces uma linha clara entre estas duas realidades?
Shadi: Eu não preciso de estabelecer uma linha entre as duas realidades: cada uma tem uma identidade forte. Por isso, eu não penso em jogos enquanto estou a cantar (e não penso em cantar enquanto estou a desenhar jogos). Dito isto, em algumas produções no estrangeiro tenho muito “tempo livre para jogar”, quando não estou a ensaiar ou a actuar – uma vez que estou longe dos grupos com quem jogo e nem sempre tenho colegas que gostem de jogos. Eu nunca viajo sem pelo menos um ou dois protótipos na bagagem – e como os jogos do Oniverse são desenhados para serem jogados solo, as minhas longas sessões de playtest são realmente “genuínas” e dão-me um feeling real de como o jogo joga, o que deve ser melhorado, etc…
Jogas essencialmente a solo ou arranjas tempo para jogar com outros jogadores?
Shadi: Eu adoro juntar amigos e família para jogarmos juntos, e gosto também de ter tempo para mim e jogar um jogo a solo.
Podes-me dizer 3 dos teus jogos favoritos? O que aprecias mais acerca destes jogos?
Shadi: É sempre difícil para mim fazer um top X (5/20/50/100…) (e claro, quanto mais pequeno, mais difícil) porque, quando chego ao fim, tenho sempre a sensação que deixei sempre algo de fora (fazer um top 7 de entre 10 não é tão difícil, mas depois começo a pensar: “hey, só me faltam três lugares livres, e são tantos os jogos que quero colocar nesta lista”). Com apenas 3 lugares, é praticamente impossível! Ainda sim, tendo que responder, eu diria Magic the Gathering (porque joguei durante quase 25 anos e ainda gosto de jogar) e o Lord of the Rings do Reiner Knizia (porque foi o jogo que me trouxe de volta para os jogos de tabuleiro depois de jogar praticamente Magic durante seis anos e, foi o jogo que me fez descobrir como podem ser divertidos os jogos solo ou cooperativos). E claro, é impossível para mim fechar esta lista e escolher um terceiro jogo!
Foquemo-nos então nos teus jogos. Qual foi a origem de Onirim? A primeira faísca que criou o Oniverse?
Shadi: Foram duas faíscas, separadas por meses. A primeira foi a desilusão com os tradicionais jogos de paciência. Comprei diversos livros na esperança de ter uma série de opções portáteis para jogar solo enquanto estivesse a viajar. Mas a maior parte (senão todos) dos jogos de paciência que tentei eram bastante chatos, sem decisões suficientes para que fossem divertidos. Eu cheguei a considerar escrever um livro com “novas” regras para jogos de paciência, onde um gamer habituado a jogos de tabuleiro modernos encontrasse diversão suficiente. Depois desisti da ideia, principalmente porque achei um baralho tradicional de 54 cartas e a sua ausência de tema desinteressante. A segunda faísca veio quando estava a viajar pela Alemanha, depois de ter comprado e gostado muito de “Al Cabohne” (a versão solo/2 jogadores de Bohnanza). Achei uma pena que toda a série Bohnanza não fosse adaptada a ser jogada solo, e comecei a imaginar o que seria uma linha de jogos de tabuleiro modernos desse género! No dia seguinte, comecei a anotar as ideias para uma série de jogos que seriam portáteis e possíveis de jogar a solo.
E as ilustrações? A Elise Plessis criou uma atmosfera e um ambiente impressionante para os teus jogos. Como é que tudo começou? Procuraste este estilo de ilustração em particular enquanto estavas a desenhar o teu primeiro jogo?
Shadi: Eu descobri o trabalho da Elise numa exposição no último ano do seus estudos na escola de belas artes; Eu estava á procura de algo diferente: um artista para ilustrar o meu primeiro projecto de jogo (que acabei eventualmente por colocar de lado), que era um jogo de estratégia acerca de Ópera. Eu adorei o trabalho dela e fiquei com o seu endereço de email – Lembro-me de pensar: “Se um dia desenhar um jogo para crianças, vou-lhe pedir para fazer as ilustrações”. Alguns anos mais tarde, tinha acabado Onirim, e queria ter um protótipo suficientemente bom para ser publicado e comecei a considerar vários artistas. Nessa altura, a maioria das ilustrações nos jogos de tabuleiro eram ou estilo “fantasia heróica séria”, ou estilo “realístico/clássico”, ou mesmo com um toque de banda desenhada (Dixit e Ascension ainda não tinham sido publicados). De repente tive esta ideia: porque não usar um estilo de ilustração que ninguém usa nos jogos para adultos? Decidi perguntar á Elise (mesmo não sendo Onirim um jogo para crianças), sentindo que ela poderia trazer algo bastante especial e único.
Ou teus jogos do Oniverse são muito bem cotados entre jogadores solo. Foram estes jogos essencialmente criados para serem jogados a solo e o modo cooperativo com 2 jogadores é apenas um extra, ou foram criados como jogos de 2 jogadores que podem ser jogados a solo?
Shadi: Mesmo sendo criados como jogos solo, sempre quis ter uma versão 2 jogadores cooperativa que adicionasse algo à experiência solitária. Eu descobri quanto divertido poderia ser um jogo a solo com o Senhor dos Anéis do Knizia, que é aliás um jogo cooperativo, não um jogo solitário. Agora, é como fazer a mesma viagem mas em sentido inverso: começar da versão solo e chegar à versão cooperativa.
Jogos de tabuleiro e de cartas solo estão a ganhar terreno, e os teus jogos são sempre uma referência para jogadores à procura de novos jogos solo para adicionarem às suas colecções. Tens notado um aumento de interesse nos teus jogos hoje em dia em comparação com a altura em Onirim foi lançado?
Shadi: De facto, quando criei Onirim, não havia praticamente jogos solo no mercado. Eu acabei o protótipo quando Agricola e Race for the Galaxy introduziram versões solo aos seus sistemas (inicialmente desenhados para vários jogadores). Friday saiu um ano/ano e meio depois de Onirim ter sido publicado. A tendência é para aumentar, com mais oferta de jogos que ofereçam uma versão solo – e alguns podcasts e guilds focados na experiência solo a aparecerem na internet.
Quando começas a criar um jogo, começas pelo tema ou com uma ideia para os mecanismos do jogo? Porque ultimamente nos teus jogos do Oniverse, vejo que estás a explorar ideias diferentes: Sylvion é um “tower defence”, Castellion é um “tile laying” e Nautilion usa dados!
Shadi: Depende: para Onirim e Urbion eu comecei com o tema, para Sylvion e Castellion com os mecanismos. Mas tema e mecanismos contribuem sempre durante o desenvolvimento do jogo, e respondem de certa forma um ao outro. Nautilion é o perfeito exemplo disto: para o jogo básico, comecei pelos mecanismos, e o seu tema deu-me a maior parte das suas expansões.
Eu li uma interessante teoria de um user do BoardGameGeek. Ele diz que as 4 portas em Onirim estão conectadas com outros jogos da série Oniverse. A porta verde e a sua ligação ao jardim está relacionada com Sylvion, a porta castanha e o seu aspecto acastanhado está ligada a Castellion e que a porta azul e sua ligação ao tema aquário está relacionada com Nautilion. Por isso a minha pergunta é a seguinte: o próximo jogo do Oniverse está relacionado com o observatório e o seu aspecto avermelhado? Ou será uma segunda edição de Urbion a preencher este vazio? Ou isto é apenas uma teoria de alguém que tem muito tempo livre?
Shadi: O Oniverse foi concebido desde o início como uma série de jogos. Além disso, quando fizemos o “reboot” (com a segunda edição de Onirim), eu já tinha todo o arco da série (quantos capítulos/temporadas; quais mecanismos, que temas a explorar…). Ainda assim, eu não planeei todos os detalhes, porque eu acho que é essencial deixar algumas coisas em aberto. Porque eu preciso de ter algum espaço e liberdade durante o processo criativo (mesmo durante as fases finais do processo), e porque eu preciso de deixar a audiência livre para “ler” o trabalho com os seus próprios olhos. A teoria no BGG que mencionaste, ilustra isso de certa forma. Eu li quando foi publicada, e reconheci nela algumas das intenções que eu tinha quando criei o Oniverse; os elementos que não reconheci não estão necessariamente ausentes do Oniverse: eles pertencem a esse “espaço livre” que qualquer autor pode/deve deixar nas suas criações (sejam elas um livro, um filme, uma série de TV…) para deixar a audiência fazer parte do seu trabalho.
Isto leva-me á minha próxima pergunta. Estás a trabalhar em novos jogos da série Oniverse, ou a planear fazê-lo?
Shadi: Sim, neste momento estou a “polir” o sexto capítulo e estou a testar o que virá depois.
Urbion
Tens planos para criares outros jogos fora do ambiente do Oniverse, tais como jogos competitivos ou de vários jogadores, por exemplo?
Shadi: O meu primeiro jogo, como já referi, era um jogo de estratégia (e competitivo) para vários jogadores acerca de Ópera. Mas nunca fiquei totalmente satisfeito com ele de forma a tentar publicá-lo. Talvez volte a trabalhar a sério nele novamente um dia, mas por agora estou muito envolvido no Oniverse, que é excitante de desenvolver e por isso não necessito de mais nada no momento. Quem sabe? Posso até mudar de ideias por uma ou outra razão (momento de inspiração, proposta para colaborar num projecto interessante…)
Quando desenhas um jogo, há algum objectivo global que pretendas atingir em cada uma das tuas criações?
Shadi: Para o Oniverse, eu diria: jogos solo/2 jogadores cooperativos que são compactos em relação aos componentes, setup, estrutura das regras, duração de jogo, e ao mesmo tempo ofereçam escolhas profundas e difíceis, com a sensação que uma narrativa se vai desvendando. Aliás, este “bom” rácio ligeiro/profundo (o máximo de profundidade possível nas decisões/jogabilidade com o máximo possível de simplicidade nas regras) é algo que também procuro na maior parte dos jogos que gosto de jogar.
Eu tenho muitas outras perguntas, mas eu vou reduzir o teu sofrimento e vou directo para as minhas últimas perguntas. Como é que vês este crescimento impressionante do nosso hobby? O facto de que cada vez mais pessoas estão a descobrir jogos de tabuleiro? Achas que um dia a Asmodee vai comprar a Apple?
Shadi: Será sempre difícil de prever qual das duas vai comprar a outra! Mais a sério, estou muito contente com o crescimento do nosso hobby. Estou convencido que a maior parte dos jogadores são como amantes de Ópera: o que eu chamo de “elitistas próselitos”. Eles têm talvez a sensação que aquilo que eles gostam é provavelmente melhor do que o que as pessoas “não iluminadas” gostam, e (ao contrário da maioria dos elitistas normais) eles estão ansiosos por partilhar o que eles gostam com outras pessoas, e ficam contentes quando mais pessoas descobrem os jogos modernos/ a ópera.
Com mais de mil jogos a serem publicados todos os anos, como é que acompanhas o que é novo e interessante para ti?
Shadi: Eu subscrevo duas revistas (Plato em Francês e Spielbox em Alemão), e leio acerca de jogos na internet quase todos os dias. Ainda assim, são lançados tantos jogos que é difícil acompanhar o passo. Mas não há problema: Eu já fico contente por descobrir novos jogos que me entretenham – e isto acontece regularmente, por isso…
Bem, muito obrigado pelo teu tempo e por não teres fugido durante a entrevista. Eu sei bem que mutilei algum do teu precioso tempo! Obrigado!
Shadi: Obrigado!
Bom trabalho!
Estava curioso sobre o criador deste universo e adorei saber que vêm mais jogos a caminho:)
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