NUSFJORD: ordenhando sardinhas

Uwe Rosenberg desenhar um jogo em que não entre gado, reprodução de gado e afins, é quase tão raro que as poucas vezes em que isso aconteceu foi quando ele decidiu roubar o estojo de costura de avó e fazer um jogo (Patchwork), ou quando ele decidiu ir cultivar vegetais para a China  (At the Gates of Loyang). Ainda assim, a esfera doméstica manteve-se sempre como enquadramento global, porque mesmo os seus vikings em (A Feast for Odin) são no fundo Vikings muito fofinhos, muito dados à agricultura de subsistência, que se contentam com uma púcara de nabos no banquete em vez de doses industriais de álcool e que quando pilham uma ilha, poêm-se a jogar ao “Querido mudeia a casa” espalhando moedinhas, roupas e variados artefactos pelo chão em vez de desatarem a pilhar,  violar e destruir.

Daí a minha curiosidade quando o seu mais recente título foi anunciado, onde gerimos uma companhia de pesca no arquipélago de Lofoten. Um jogo onde existem apenas 3 recursos: madeira, peixe e ouro. Um jogo onde existe um limitado número de espaços de acção para alocar os nossos trabalhadores.

Say what! Poucos espaços de acção para alocar trabalhadores!? Mas onde estão os 3272 espaços de acção de A Feast for Odin ou Fields of Arle que mais parecem o cardápio de um restaurante Francês caro ou as páginas amarelas? Eu pensei que o Uwe tinha enveredado por uma estrada sem retorno, mas este retorno ás origens, esta abordagem minimalista, voltou a espicaçar o meu interesse. É que na verdade meus amigos, eu não tenho nada contra os últimos jogos de Uwe, nada contra a sua complexidade ou mesmo as suas essências híbridas e extravagantes. Eu apenas não tenho tempo! Não tenho tempo para jogar um jogo durante 3 horas e só depois dessas 3 horas ter alguma ideia de como jogar minimamente bem o jogo. Porque de seguida, não tenho novamente 3 horas para finalmente jogar o jogo como deve ser jogado. Aliás, não faço ideia de quando serão as próximas 3 horas, por isso deixo para apenas um restrito número de jogos essa usurpação de tempo.

Nusfjord é elegante e deve essa qualidade ao facto de ser um filho bastardo de quase todos os jogos desenhados até hoje pelo Uwe. Na sua essência, o adn de Nusfjord é tão promíscuo que provavelmente até o Harvey Weinstein pode ser acusado da sua partenidade. Na entanto, tudo aquilo que faz, faz bem e provavelmente mehor do que as bases em que se apoia. Vamos por partes.

Alocação de trabalhadores: Começa como o Agricola, com uma série de espaços de alocação. No entanto e ao contrário do primeiro, os espaços de alocação não aumentam de ronda de ronda para ronda. Torna-se menos obtuso, na minha opinião. Temos sempre 3 discos de acção que vamos usando ao longo de 7 rondas. Em Agricola e Le Havre, perto do final do jogo as opções (que no início do jogo eram parcas) são tantas que a nossa cabeça anda à roda em desvario, tal qual Trump nos bastidores do Miss Universo.

Variabilidade: Tal como em Agricola, são as cartas que orientam grande parte da estratégia do jogador. Em Nusfjord, elas estão disponíveis a serem construídas por qualquer jogador. Em Agricola um jogador pode ser penalizado porque as cartas que recebeu criam menos oportunidades de combo do que as cartas que outros adversários receberam. Não é por acaso que a nova edição vem com menos cartas e com cartas que permitem sinergias baseadas mais em casos gerais do que em casos particulares. E para que seja criada uma certa incerteza, a certa altura durante o jogo em Nusfjord, cada jogador recebe algumas cartas para a sua mão que se tornarão publicas mais tarde caso ele não queira ou decida não as construir. Este detalhe torna mais refinado o mecanismo introduzido em Glass Road onde todos os edifícios estavam disponíveis mas um jogador podia reservar a determinada altura 3 deles, criando aquela sensação de “queres estas 3 bolachas, não querias?” Aparte disto, o jogo vem com 3 baralhos diferentes (que permitem estratégias bem diferenciadas) e em cada jogo apenas 1 é usado. E quase sempre nem todas as cartas aparecem, especialmente em jogos com menos jogadores.

Manutenção e minúcia: Em Agricola e Le Havre para além de jogarmos também trabalhamos. Repor recursos depois de cada ronda torna-se tão interessante após alguns jogos quanto assistir a um documentário acerca do dia-a-dia de um arquivador no Arquivo Nacional da Torre do TomboGlass Road tentou resolver isso, mas convenhamos que ter marcar 279 recursos diferentes em duas rodas de recursos concorre também para os Galardões da Real Academia do Aborrecimento Supremo. Nusfjord tem apenas 3 recursos. Dois em abundância, Madeira e Peixe, e um que é quase sempre escasso de tal forma que literalmente as moedas de ouro são tão pequenas que é quase como se não existissem.

Estratégia: Apesar de rápido, o jogo apresenta-nos constantemente decisões difíceis: como usarmos as nossas escassas 3 acções por ronda, que edifícios planeamos construir para centrar a nosss estratégia em redor, que anciões devemos recrutar para potencializarmos o caminho que escolhemos. E estas decisões não se tornam exponencialmente complicadas e obtusas porque na essência temos apenas 3 recursos para gerir. Madeira: usada essencialmente para construir. Peixe: usado para construir e activar os nossos anciões. Ouro: usado em vários contextos diferentes, valendo também pontos no final do jogo. Com mais recursos para gerir, esses 20 minutos de jogo por jogador tornar-se-iam o dobro e este jogo entraria, pelo menos para mim, na categoria do se-vou-gastar-horas-a-jogar-um-jogo-mais-vale-jogar-o-(inserir aqui o melhor jogo longo da vossa colecção).

Adaptar-se e Sobreviver: Como todos os edíficios e anciões estão disponíveis a todos os jogadores, pode bem acontecer que aquele edifício que queremos muito é construído por outro jogador, mas não temam, os restantes edíficios que sobram podem levar a estratégias tão distintas e válidas que é fácil mudar o rumo. Mais, a certa altura receberemos alguns edifícios para a nossa mão e teremos a oprtunidade de centrar a nossa estratégia em algumas dessas cartas ou ignorá-las e continuar o caminho trilhado.

Uma faca de 2 legumes: Mas nem tudo são rosas e existem alguns pontos que são passíveis de crítica, pelo menos no meu entendimento. Começo pelas acções (“shares”). Os jogadores podem durante o jogo emitir acções da sua companhia e com isso ganhar algum ouro. O póprio jogador ou outros jogadores podem mais tarde comprar essas mesmas acções. O problema é que cada acção tem apenas como benefício um peixe em cada ronda de pesca e um mísero ponto no final do jogo. Ora, num jogo em que a determinada altura temos tantos peixes a saltar para o nosso barco quantos os que saltaram para o barco do Egas no clássico “ahhhhhhhhh-peixe-peixe-peixe-peixe”, o custo benefício de comprar acções parece… pouco evidente. Mais do que isso, o próprio mecanismo parece colado a cuspe no jogo. Quase como se o Uwe estivesse a ressacar de não poder ter introduzido gado ou derivados no jogo e tivesse que inventar algo que lhe permitisse desviar a atenção dessa falha. O segundo ponto é quanto à variabilidade. Lembram-se de ter dito que o jogo tem ziliões de edifcíos? Pois bem, quanto aos anciões, a história inverte-se. O jogo é sempre jogado com as mesmas cartas anciões, o que nos deixa com aquela sensação de quem gastou as fichas todas a mobilar a sala e depois teve que se desenrascar com a cozinha da avó. Bem sei que os poderes de alguns anciões poderiam retirar o balanço do jogo caso não estivessem em jogo, mas talvez o jogo devesse trazer alguns anciões fixos e outros variáveis que iam alterando de jogo para jogo. Por fim, alguns edifícios podem ser construídos com peixe. Eu percebo o porquê, mas temáticamente faz tanto sentido quanto dizer que os discursos de Donald Trump são construídos por palavras sábias. Além do mais, quem é que se arricaria a viver numa casa feita de madeira e peixe!

Mas nada disto machuca tudo o que de bom o jogo tráz. Para mim a surpresa foi maior porque estava à espera de pouco e fui brindado com muito. Para mim que, ansiava pelo dia em que o Uwe voltasse a beber daquela fórmula mágica do Agricola (alocação de trabalhadores apertada, cartas que influenciam a nossa estratégia), experienciar um jogo que tráz tudo isso novamente mas que se joga numa fracção do tempo dos seus antecessores, foi como sacar meia dúzia de caramelos de uma caixa onde só cabia um. Ok, a metáfora não foi grande coisa, mas vocês percebem a intenção…

Foi como voltar a comer o Pão-de-Ló da avó quando só estavamos á espera de comer o do Pingo Doce (nada contra o pão-de-ló do Pingo Doce).

Por causa dessa sensação familiar, Nusfjord é para mim (e até este momento) a grande surpresa do ano. Simples, refinado e que oferece boas decisões. Poucas mas boas (e não, não estou a divagar acerca de outras coisas). Tal como a humanidade que evolui de geração para geração, nem sempre da forma mais complexa, Nusfjord asssenta na fórmula dos seus antecessores o sucesso do seu refinamento.

E agora se me dão licença, tenho que ir buscar o Donald aos bastidores da Miss Universo. Não vá o seu advogado ter que abir novamente o livro dos cheques.

 

Créditos Imagens: W. Eric Martin, Brandon Waite, Ink, Mariella Barra

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